Com_traste

Com_traste

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Pre...Visões


Vestira o casaco de todos os dias, não olhava antes o dia pela janela nem se preocupava em ouvir na rádio se o trânsito fluía.
Saia como sempre, devidamente vestida para a ocasião sem se olhar o espelho ou à sombra.
Enfrentava o sol da mesma forma que a chuva e o frio. ..insensível aos temporais, só temia os trovões e alguns relâmpagos, por os saber capazes de destabilizar toda uma vida. Uns por ser impossível de não fazer bater portas e janelas, outros por iluminarem, mesmo ao longe, toda a escuridão que trazia.
Circulava pela direita, dando prioridade aos peões não só na passadeira. Gostava de fazer das regras de trânsito, algo mais que um simples circular de máquinas comandadas por encartados condutores, ou dos outros, que sem carta escrita por ninguém, ousavam circular nas mesmas estradas até que a sorte do guarda ou o azar dele o detivessem.
Aos semáforos piscava os olhos, perguntando-se sempre porque lhe calava o amarelo em dias de pressa, sabendo-a incapaz de não parar como se de vermelho se tratasse.
Nos dias em que o rádio tocava as musicas escolhidas à sorte, mas que a enchiam como se a sorte fosse ela a comandar, sorria ao espelho retrovisor. .. imaginando no banco de trás, algo mais que a pasta dos documentos não assinados e dos livros de cheques em branco.
Havia sempre duas ou três rotundas pelo caminho, em dias de musicas cheias dela, sorria e dava mais que uma volta, fingindo não saber bem qual a saída, querendo demorar o momento da decisão. Saia sem ficar tonta, imaginando um outro carrossel, em que ao fim da canção só poderiam continuar na roda quem tivesse mais que um bilhete para a viagem.
Nunca se lembrava bem do espaço e do tempo entre a ida e a vinda…reconhecia o caminho pelas curvas difíceis e perigosas, pelas bermas ajardinadas convidando a piqueniques ou pela ausência de marcações na via. Há estradas tão iguais que qualquer pormenor faz a diferença.
Já se perdera um ou outra vez no regresso, mas disfarçava o erro usando aquela frase sábia “todos os caminhos vão dar a Roma”…mesmo sem nunca lá ter ido…
Chovia agora, sabia bem ter trazido o casaco de todos os dias, estacionou à primeira no espaço marcado, por vezes pisava a linha mas era tão ténue que só ela sabia da transgressão.
Entrou em casa deixando as luzes apagadas, sabia de cor o sitio de todos os objectos e de todas as vidas. ..as chaves no suporte da parede baloiçaram, fazendo o som que lhe fazia lembrar o guizo do gato que nunca teve. No cabide, o casaco de sempre pendurado, o peso das malas, cheias de recibos velhos do multibanco, e dos casacos nunca usados, davam um ar de cansaço ao coitado.
O corredor, ligava a saída da rua a todas as entradas possíveis, numa casa desenhada para gente comum. Mas como sempre, escolhera mais uma vez o quarto de hóspedes para se deitar…
Na manhã seguinte, sem saber se início ou fim das semanas que decorriam, ligava o rádio e cuidadosamente escolheu a roupa adequada ao tempo que previam, escutou as noticias do trânsito e saindo já com os minutos contados..apanhou o caminho que evitaria atrasos e acidentes de percurso, por vezes há que seguir por onde nos dizem ser mais certo..ao longe um trovão fez com que se esquecesse de ligar o rádio do carro, esperava o relâmpago que tardava…mas ela sabia que vinha.
Acendeu um cigarro para afugentar o medo…sabia ser impossível continuar no escuro quando os dias eram de tempestade e ela tinha optado por se deixar guiar.
Fez a rotunda sem pagar bilhete para segunda volta…e desta vez..todos os caminhos foram dar a Roma mesmo antes dela se perder no regresso.

Sem comentários:

Enviar um comentário