Com_traste

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quarta-feira, 6 de julho de 2011

Contrabandista de sonhos



Contrabandista de sonhos
Chamavam-lhe assim desde o tempo de menino
Desde sempre que pisava o risco que dividia o sonho da razão
Trazendo para o lado de cá do mundo, que se toca e cheira,
Todas as coisas que só existiam nos olhos das crianças e no coração dos loucos
...Desde esse tempo que se escondia na escuridão da noite
Pé ante pé
Cuidadosamente abrigado dos olhares dos donos do mundo
Procurando silenciar a cotovia que trazia ao ombro
Não fosse ela, na inocência de pássaro, piar na hora imprópria
Tentando fugir às mãos pesadas dos crentes na verdade visível e palpável
Cresceu contrabandista
E quem cresce na margem nunca será levado pela corrente…dizem os sábios
Mesmo que o leito tome mais do que lhe é devido
Mesmo que o tentem engolir no meio do lixo e restos das coisas
Ele escapa sempre
Nunca, nem mesmo quando alguns se iludiram com o seu ar de gente normal
Ele foi igual aos outros
E não era fácil esconder de todos este segredo
Nem conter a vontade de gritar de euforia cada vez que descobria mais uma fada no meio das couves
Ou um simples pássaro verde dentro do prato de sopa
E nas nuvens, nas nuvens ele escondia as estrelas do mar apenas para que adormecessem um pouco
Quase todas as noites enchia os bolsos das calças com pedras preciosas
Que juntava pouco a pouco na carroça do avô, sem que este desconfiasse de nada
Nem mesmo quando depois de erguer o muro da casa, que andava a construir há anos, estranhasse o brilho que ele tinha mesmo sem lhe dar o sol
E o menino cresceu assim entre a realidade e a fantasia
E ninguém se lembra de alguma vez o ver triste
Apenas silencioso
Pois só ele sabia falar na linguagem das outras coisas
Aquela em que é possível ouvir-se claramente a dor das ruas
Os choros das aves e os risos dos peixes voadores
A mãe, sempre que lhe afagava o cabelo e o beijava
Sorria e chamava-lhe o “meu passarinho”
Porque talvez sejam as mães as únicas capazes de ver as asas dos filhos…
Mesmo quando eles apenas tenham pássaros nos olhos
E ninhos nos bolsos das calças
E quando jovem, começou a guardar tudo o que trazia, do outro lado da vida, num livro
Quando eram assim coisas muito grandes..como cavalos alados e torres de princesas aprisionadas..dobrava-os cuidadosamente em palavras e deitava-os na página branca do único livro que possuía.
Foi assim que pouco a pouco ele inventou palavras que ninguém ainda conhecia
E em tantas outras criou frases com sentidos improváveis
Quando os relia, era sempre em voz baixinha
Foi por volta dessa altura que lhe começaram a chamar doidinho
Por acharem que falar sozinho não era coisa de gente normal
E cresceu, cresceu, cresceu…sem nunca mais parar
Ficou tão grande que a mãe se assustava cada vez que de manhã o ia acordar
E um certo dia, sem que nada tivesse dado conta, nem ele mesmo se apercebera…ficou homem…aparentemente como todos os outros homens, a única diferença era poder agora estar com uma perna para cada lado da linha que separava os dois mundos, e ser assim muito mais fácil apanhar os sonhos sem que ninguém o visse.
Juntava em montes, livros e livros dos sonhos que trazia em contrabando
Criando como que um muro à sua volta, que brilhava como o muro que o seu avô erguera à volta da casa.
Com o tempo, e com todos os sonhos que possuía…morreu sem nunca ter sido descoberto nem levado a tribunal.
Ainda hoje naquela casa há uma cotovia que nunca ninguém ouviu piar…e nas nuvens as estrelas do mar adormeceram para sempre.

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