Com_traste

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quinta-feira, 7 de julho de 2011

Pouca Terra



Raramente ouvia as noticias, ler jornais também nunca fora seu habito.
Naquela tarde tomara a decisão de seguir viagem, metera os poucos haveres dentro da única mala de viagem que tivera toda a vida e que praticamente nunca se lembrara de ter usado.
E agora estava ali, naquele banco de madeira ressequida, notava-se que fora pintado de azul pelas sombras azuladas que se conseguiam ver na madeira, sentada a olhar o relógio que parecia não se mexer.
Em todas as estações havia um assim, grande e dando as horas certas, para quem esperasse o próximo comboio não ficasse em terra.
A linha de comboio era agora uma linha coberta de vegetação, a única coisa que parecia com vida naquelas paragens…soprava um vento quente que as fazia ondular e tornava menos agreste o cenário.
Ela olha o horizonte serenamente, os seus olhos naquele momento pareciam espelhos…onde se olhava toda uma vida.
Esperou tempo sem fim, não contabilizado pelos minutos ou horas, mas contado pela expressão do seu rosto…foi de menina a mulher, cresceu, ali sentada naquele banco de estação de comboio.
O seu pai tinha sido chefe de estação, ela lembrava-se bem do tempo em que a vida era uma correria, entrando e saído da estação, ora para levar o almoço ao pai, ora para ficar apenas a ver os comboios partirem e chegarem…levando horas sem fim a acenar aos passageiros que lhe respondiam com um sorriso.
Fora feliz a sua infância, lembrara-se agora que fora feliz…
De repente ouve um apitar familiar ao longe e ergue-se de repente, agarrando a mala, arranjando o vestido e voltando a apertar o lenço que teimava em cair da cabeça…chegou-se junto ao carris…como quem tenta não perder o lugar melhor ou até quem sabe…como quem tenta não ficar em terra.
O comboio chega, perdendo a velocidade à medida que se aproxima da estação…e apitando cada vez com mais força…parecendo acompanhar as batidas do seu coração.
Entra, senta-se no lugar que sempre desejara...junto à janela e de costas para a estação…seguiria olhando em frente, o que deixava para trás não precisava de olhar, nunca esqueceria.
Esperou um pouco e logo depois o comboio voltou a apitar dando sinal de partida.
Ajeita-se no banco e sorri olhando a janela
O seu corpo mexe-se conjuntamente com o deslizar da máquina no carris, era como se dançasse…e há tanto tempo que ela não dançava!
A estação ia ficando para trás, ao longe vê-se um monte, o mesmo monte que sabia ser habitado pelo simples facto de ver todos os dias o fumegar na chaminé…bem de longe ela seguia aquelas vidas tantos anos…e agora estava ali tão perto.
Umas vacas pastavam e pareciam indiferentes à passagem do comboio. Perto do monte um homem trabalhava a terra e junto dele uma criança brincava com um cão.
Ela olho-os, e sem saber porquê, acenou-lhes com um gesto lento e longo de adeus…ao mesmo tempo que sorria. O homem não parecia dar importância ao facto mas a criança parou, e com uma cara de quem está incrédulo mas ao mesmo tempo feliz, responde ao gesto fazendo igualmente adeus e corre, juntamente com o cão, tentando perlongar o momento…
Mas o comboio não parou e ela vira-se para trás na tentativa de ver a criança mais um pouco…o monte desaparece atrás da serra e a paisagem muda frente aos seu olhos.
Recompõe-se e volta a olhar pela janela na esperança de fixar todas as árvores, todos os animais, ou coisas que reconhecia…saberia que não faltaria muito para deixar de se sentir em casa, a paisagem mudaria rapidamente e ela depois só teria as suas memórias.
Ao longe ouve uma porta a abrir e um som familiar… era o som do pica bilhetes, que em tempos, tanta vezes lhe servira de brincadeira…levou a mão ao bolso e retirou o seu…e num gesto seguro esticou o braço para que todos pudessem ver que ela o tinha…antes que fosse inutilizado e de nada mais servisse a não ser como prova, caso alguém um dia duvidasse, que ela tinha feito aquela viagem.
Ouviu-se o crick uma e outra vez…e depois disso nada mais se escutou.
No dia seguinte, quem via televisão e lia jornais, pode saber do facto bizarro acontecido naquela região…na estação de caminho de ferro, encerrada há anos e anos, foi encontrada uma senhora de idade avançada, não se sabe ao certo quantos dias estaria morta naquele banco…uma mala numa mão e na outra uma fotografia dela enquanto moça. Naquela fotografia podia-se ver o seu rosto bem jovem, com dois buracos no lugar dos olhos.
O revisor tinha passado por ali… ao longe uma criança continua a fazer adeus, todos os dias à mesma hora…a um comboio de deixou de passar.

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