Com_traste

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quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Quis a morte


Quis a vida
O destino
O único destino certo, a morte
Quis a morte
Sim, faz mais sentido assim...foi ela que quis!
Hoje, levar-me à presença dela
Alguém que não via há muito, de quem guardo lembranças vagas mas boas, talvez por serem de infância...morreu.
Morreu o Guerreiro!
Primo afastado...mas que senti perto..ali numa caixa de madeira fria, magro pálido, marcado e desfigurado.
Ele, antes deste dia, sempre foram uma pessoa forte, rosto bem redondo e com um grande sorriso.
A mulher, minha prima, representa na terra a bondade...dela tenho sempre aquela imagem que revisitei hoje...boa e meiga..hoje sofrida, chorosa...dor maior que ela...
A filha, prima de quem lembro nos meus tempos de tranças...calma, brincalhona e de uma doçura maior...hoje, ao ver a sua dor..ao pensar em muitas outras que a vida se encarregou de lhe ofertar...talvez por a saber tão doce e só alguém assim poder aceitar certas coisas...hoje, trazia nos ombros um mundo a desabar.
O genro, um homem pequeno, ruivo, de sorriso amigo, sempre está "lá", de voz amiga, carinhoso e preocupado...mesmo quando só nos encontramos em momentos menos bons..e poucos, hoje ...mais uma vez me abraçou e sorriu...a dor dele é do tamanho inverso da sua altura, é do tamanho do seu amor pelos outros.
Hoje, num local onde se encontra sempre a família que nunca se viu, onde os nomes dos avós e bisavós são chamados para clarificar quem é quem..as ruas onde se nasceu e cresceu, as aldeias, as vilas..e as terras que os levaram para longe do ninho, são repetidos vezes sem conta.
Hoje, a morte quis...
Hoje, esta coisa que negamos desde que pela primeira vez a sabemos existir, hoje fez-me olha-la nos olhos...fria, pálida, marcada, desfigurada...e não a temi.
Senti dor, pena, aquela pena consciente de que está na hora...chegou a minha hora de a encarar nos olhos..e hoje foi apenas o primeiro dia, a este seguirão outros, se a ordem das coisas se cumprir, em que não só a vou olhar..irei toca-lhe, mexer-lhe bem fundo beija-la...como quem a possui.
A morte é nossa desde sempre, mas há um dia é que nos tornamos mais íntimos...antes que chegue um outro, em que nos tornamos num só...e nós seremos a morte, mesmo que continuem a chamar-nos Maria..por a morte ter um nome feio quando é dos outros que desconhecemos, e um nome bonito quando é a própria, ou a que conseguimos olhar nos olhos.
Hoje...ouvi as palavras sagradas, que até os não crentes ouvem nesta hora...as tais que comprovam a cobardia dos Homens...pelo sim pelo não...
O padre Roque, idoso, de ar simpático, voz de gente...leu as sagradas escrituras... nessa altura, a forma como pedia que as pessoas se levantassem em determinadas alturas, tendo o cuidado de repetir vezes e vezes..."mas vejam lá, se não puderem ou se estiverem a sentir menos bem...não é obrigatório, não é mesmo preciso!"...fez-me sorrir e ficar mais atenta ao que ele dizia...
Notei que a leitura só se distinguia das habituais pelo tom de voz...não lhe notei grande entusiasmo ao repetir ladainhas...
Mas é na altura em que ele nos fala de Homem para Homem, que não consegui deixar de o ouvir com mais atenção, olha-lo também nos olhos e sorrir.
Terminava as frases perguntando se estávamos a entender o que dizia...e parecia esperar resposta.
Deu razão a Saramago, ao falar de um Deus sádico e castigador...nós os Homens usamos Deus, dizia...e o pior é que o usamos e o ofendemos...não é nome do senhor...em nosso próprio nome.
Olhou os ramos e as coroas de flores...perguntando: quantos de nós ofertámos flores em vida uns aos outros..agora, agora usamos aqueles ramos para nós mesmos..elas não mais significam que um acto de conforto pessoal..à nossa pessoa..uma obrigação social...(mas tal como desculpou os que não se podiam levantar na altura da palavra de Deus, igualmente ao dizer isto repetiu...mas não faz mal...estão a entender? )
Questionou o amor a Deus..como há Homens capazes de acreditar num ser invisível, pelo qual dizem tudo fazer e nada fazem pelos seres que consegue ver todos os dias? Estão a entender?...
Fez-se silêncio e depois falou do amor..e da facilidade como se sabe quem é um Homem bom..
Sorri e nesse momento ele fixo-me....sorrimos!
O Guerreiro que agora é morte...é um Homem bom!
Tenho a certeza! Não que eu me lembre bem dele..não que o tenha visto muitas vezes em vida, em doença...não por ser agora um Guerreiro morto...Mas porque a sua mulher a sua filha, o seu genro...são pessoas tão doces, tão boas..tão raras...e hoje o beijaram...agarraram..chamaram...e ele já magro, já pálido, já desfigurado..já morte.



http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=IBO0ol_3KPU#!

2 comentários:

  1. Foi o mais maravilhoso epitáfio que alguma vez encontrei. Uma grande lição sobre sobre a vida, mas assente na morte!
    Lamento a perda, seja para si, seja para todos os que a estão a sentir.
    Pela lição que nos oferece o seu lindo texto, muito obrigado. A sério! Surpreendeu-me! Mas tal já é hábito, seja o tema que for! Muito Obrigado.

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